Revista Velhas Nº 11: Chuva, enchente e dor

15/05/2020 - 19:21

Rio das Velhas tem umas de suas mais fortes enchentes das últimas décadas;
não preparadas, cidades sofrem com perdas materiais e humanas


No número 126 da rua Wenceslau Bras, no bairro Nova Esperança, no município de Santa Luzia, a casa de Luizene dos Santos foi engolida pelas águas da forte chuva que caiu ao longo de todo o 24 de janeiro de 2020. Eram os próprios moradores que, no dia seguinte, limpavam suas casas e a via pública.

Perdeu-se tudo: camas, roupas, utensílios domésticos, fotografias. Além dos objetos materiais, foram levadas também memórias e afetos. A marca d’água nas paredes, a lama impregnada no piso da casa, o quintal devastado e os objetos restantes revelavam as cenas de horror narradas pela moradora. “Foi uma coisa de repente, a gente não estava esperando. Realmente estavam falando que a chuva ia dar forte na sexta-feira [24 de janeiro], mas quando chegou o dia, todo mundo ficou em casa quietinho esperando. Às duas horas da tarde, estava todo mundo dizendo que não vai ter chuva não, porque ela estava o dia inteiro fininha. Logo mais, o rio transbordou e, do lado de lá, [o rio] começou a sair do quintal do vizinho, assim que saiu já veio na casa da gente. Foi questão de 10/15min para a gente pegar documento necessário e sair correndo. Meu filho pegou a caminhonete, jogou as coisas todas dentro e, quando chegou no portão de casa, a água já estava cobrindo o capô. 1h depois, a Defesa Civil e os policiais já estavam interditando a gente para não entrar nas casas”, contou Luziene.

Na rua Wenceslau Bras – que fica às margens do Rio das Velhas – mais pessoas perderam suas casas e pertences. Muros foram destruídos, telhados desmanchados, animais mortos e o rastro do avanço do rio estava em toda parte. “A gente perdeu tudo, até hoje estamos todos procurando um lugar para ficar, a minha família e a de muita gente. Aí para baixo, nas casas que ficaram de pé, faltam pedaços de muro, as coisas foram levadas e estamos nessa situação esperando as providências de alguém, para ver quem vai dar uma atenção para a gente aqui”.

O drama vivido por Luziene foi sistemático em todo o Estado de Minas Gerais neste verão. Ao todo, 72 pessoas morreram em decorrência das fortes chuvas, inundações e deslizamentos – entre 1º de outubro de 2019 e 17 de fevereiro de 2020. Só na bacia do Rio das Velhas foram 22 óbitos e 30 municípios declarados em situação de emergência.

No mesmo dia 24 de janeiro, Raposos, também na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), amanheceu debaixo d’água e viu cerca de 3 mil pessoas ficarem desabrigadas –

o correspondente a um sexto da população local. Em Sabará, 600 moradores tiveram que deixar as suas casas. Já em Santo Hipólito, na região central do estado, o Rio das Velhas subiu dez metros e deixou o município completamente ilhado. A prefeitura chegou a decretar estado de calamidade pública.

O Comitê não assistiu à destruição passivamente. Em contato com a Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), ainda no dia 24 de janeiro, solicitou o fechamento das comportas da represa da PCH (Pequena Central Hidrelétrica) Rio das Pedras – localizada no distrito de Acuruí, em Itabirito – para evitar uma cheia ainda maior no Rio das Velhas. “Os eventos climáticos tendem a ser mais intensos, com maior volume de chuva concentrada e com maior propensão à geração de danos e impactos. Por isso, o aumento da resiliência em Belo Horizonte e de toda a região metropolitana, por meio da melhoria das condições de infraestruturas, sistemas de alerta e obras de macrodrenagem para redução de inundações, alinhadas com o planejamento urbano, são de extrema urgência para diminuir a vulnerabilidade e melhorar a qualidade de vida”, destacou o presidente do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano.

Jequitibá e as enchentes históricas

Em 1997, havia sido registrada a última grande enchente no município de Jequitibá – historicamente muito afetado por inundações. Na ocasião, a cidade, que tem pouco mais de cinco mil habitantes, ficou totalmente submersa. Na madrugada de 25 de janeiro o pesadelo voltou. Por volta das 3h, o estridente som da sirene foi ouvido: era o alerta para que moradores que residem próximos ao Rio das Velhas e na região central do município deixassem suas casas.

No dia seguinte, a cidade estava parcialmente alagada, com famílias desabrigadas e desalojadas e comunidades rurais isoladas, já que algumas pontes haviam sido levadas pelas águas. Segundo Poliana Valgas, secretária de meio ambiente do município e secretária-adjunta do CBH Rio das Velhas, a destruição só não foi maior porque Jequitibá conta com o Sistema de Alerta de Eventos Críticos (SACE), plataforma desenvolvida pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e Agência Nacional de Águas (ANA), que tem como objetivo monitorar a alta nos níveis do rio e, com isso, antecipar ações de prevenção em caso de inundações. “Só conseguimos ter um plano de contingência efetivo porque organizamos um gabinete de crise quando vimos que Belo Horizonte já estava em colapso. As tomadas de decisão do poder público de Jequitibá foram muito mais efetivas porque, em tempo real, sabíamos quanto o rio estava subindo e quando ele iria alcançar a crista do dique de contenção”, contou.

Jequitibá e Santo Hipólito, ambos cortados pelo Rio das Velhas, são os dois municípios em toda Minas Gerais que contam com as estações telemétricas do CPRM. Lá, qualquer morador pode observar a variação dos níveis de água através de réguas instaladas às margens do rio. Aliado a isso, um aplicativo que pode ser baixado no celular (Hidroweb Mobile) revela, em tempo real, todas as informações relacionadas aos níveis dos rios e os volumes de chuva.

Medo e destruição em BH

Janeiro foi o mês mais chuvoso da história de Belo Horizonte desde o início da medição climatológica há 110 anos, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O primeiro mês de 2020 acumulou 932,3 milímetros de chuva na cidade – o recorde anterior era de janeiro de 1985, quando o acumulado do mês foi de 850,3 milímetros.

Dia após dia neste final de janeiro e início de fevereiro, as cenas de horror se repetiam: ruas e avenidas debaixo d’água, carros empilhados por todos os lados, asfaltos arrasados. A cidade foi também a que teve o maior número de mortes causadas pelos temporais ocorridos em Minas – das 72 vítimas fatais em todo estado, 14 foram na capital.

Longe de ser uma surpresa, os números são resultado de políticas urbanas que progressivamente sufocaram os rios da cidade. Para o presidente do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, as chuvas de verão evidenciaram a fragilidade da gestão das águas urbanas. “Não temos feito uma cidade adaptada às águas e às mudanças climáticas. Esse período chuvoso vem comprovando que as obras de engenharia não têm sido suficientes para resolver o problema das inundações, sendo medidas paliativas que tiram o foco da discussão das verdadeiras causas do problema”, disse.

Canalização de cursos d’água é proibida na capital

Após os resultados catastróficos das chuvas, entrou em vigor, no início de fevereiro, o novo Plano Diretor de Belo Horizonte, tendo como destaque a proibição de novas canalizações de córregos da cidade – bandeira historicamente defendida pelo CBH Rio das Velhas. A medida foi aplicada por meio de decreto do prefeito Alexandre Kalil (PSD), que diz que “nas áreas de conexões de fundo de vale e ADEs [Área de Diretrizes Especiais] de interesse ambiental, fica vedada a canalização de cursos d’água em leito natural”. No texto anterior, era vedado o “tamponamento”, já a canalização deveria ser “evitada”. Segundo a Secretaria de Regulação Urbana, o decreto sobrepõe o texto do artigo 198 do novo Plano Diretor.

Nas canalizações já existentes, caso haja intervenções, pode ocorrer um processo de descanalização, se for viável. “Nas intervenções estruturantes em cursos d’água canalizados, a canalização somente poderá ser mantida se demonstrada a inviabilidade técnica ou econômica da sua naturalização”.

Subcomitês e entidades elaboram propostas para lidar com enchentes em BH

10 propostas para lidar com as enchentes em Belo Horizonte foram apresentadas à sociedade e vereadores no dia 17 de fevereiro, pelos Subcomitês dos Ribeirões Onça e Arrudas, vinculados ao CBH Rio das Velhas, em conjunto com outras 19 entidades atuantes nas áreas de arquitetura e urbanismo, mobilidade urbana, águas, saneamento e direito à cidade.

Já imaginou o Ribeirão Arrudas de volta à Praça da Estação? O Córrego do Leitão correndo a céu aberto na Praça Marília de Dirceu? E a Avenida Vilarinho com cursos d’água limpos? Essas e outras medidas importantes são elencadas na proposta que visa transformar a área urbana e que vão ajudar BH a fazer com que as águas gerem bem-estar ao invés de tragédia.

Trata-se de uma mudança de dinâmica urbana, que envolve reduzir ao máximo as emissões – e, para isso, restringir enormemente o uso de automóveis individuais –, migrar o deslocamento urbano para os transportes coletivos e os modos ativos (bicicleta e a pé), aumentar a arborização para reduzir as ilhas de calor, garantir permeabilidade do solo, recuperar e proteger nascentes e áreas de recarga hídrica, descanalizar córregos, retirar construções dos fundos dos vales, tratar o esgoto e valorizar a água. É um processo de reconstrução de uma cidade que seja mais sensível às águas, à natureza e às pessoas. “Precisamos começar a pensar de forma sistêmica e buscar soluções que vão além de tratar os problemas onde eles ocorrem. A mudança é possível, mas precisamos dar urgência ao tema”, declara a representante do Subcomitê do Ribeirão Onça, Elisa Marques.

CLIQUE AQUI e conheça mais as dez propostas para lidar com as enchentes.


Assista ao vídeo e saiba mais sobre os efeitos das enchentes na Bacia do Rio das Velhas.

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiz Ribeiro, Ohana Padilha, Luiza Baggio e Celso Martinelli
Fotos: Leo Boi, Ohana Padilha, Robson de Oliveira, Celso Martinelli, Bianca Aun, Luiz Maia, Kubus 4D