Revista Velhas nº 13: O caminho para o sertão sem fim

23/06/2021 - 16:55

Guaicuí, um lugar marcado pela confluência de dois grandes rios e fonte de cultura para o país


Árvores de troncos tortuosos, veredas mais aparentes e um rio mais exuberante marcam o caminho que vai para a região do Baixo Rio das Velhas. Caminho que foi inspiração para o escritor João Guimarães Rosa, que descreveu o sertão com toda a sua riqueza paisagística, cultural e da alma humana.

A região se destaca de várias outras da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas graças à relação das pessoas com o rio. Lá os moradores se sentem mais conectados com a água, com o lugar e com toda a tradição, como relatado por Álvaro Gomes, geógrafo, professor e morador da região.

Minha experiência com o rio é cotidiana, tendo nascido e crescido em Várzea da Palma, muito próximo da margem do Velhas. O rio faz parte do dia a dia dos moradores da cidade, é ponto de encontro casual para conversar, caminhar, é passagem para produção agrícola que vem da zona rural, é de onde sai o sustento de pescadores e de trabalhadores que retiram areia do rio nas canoas todos os dias. Além do convívio cotidiano por viver aqui próximo a ele, o Rio das Velhas é meu objeto de estudo em minha dissertação de mestrado, então costumo dizer que vim do rio e que vivo dele hoje em dia”,
conta.

Mapa da Unidade Territorial Estratégica Guaicuí

Quem parte para o Baixo Velhas se depara com a região conhecida como Guaicuí, ou Guaicuy, que compreende os municípios de Corinto, Lassance, Pirapora e Várzea da Palma, além de abrigar o encontro do Rio das Velhas com o frondoso Rio São Francisco.

Um grande patrimônio natural da região é a Serra do Cabral, que faz parte da Cordilheira do Espinhaço e é um divisor de águas entre os Rios das Velhas e Jequitaí, ambos afluentes do Velho Chico. O local também se destaca pelo grande número de sítios arqueológicos pré-existentes, já que no local viveram povos indígenas nômades até aproximadamente 350 anos atrás.

Além disso, a Serra do Cabral é considerada um reservatório para a produção de água dos mananciais da região, em razão da presença de nascentes. É válido ressaltar que as nascentes são responsáveis por abastecer os riachos, córregos e ribeirões e a sua proteção reflete na melhoria da qualidade e quantidade das águas.

Para contribuir com a preservação da Serra do Cabral, o CBH Rio das Velhas segue investindo em estudos e ações que garantam o patrimônio natural.

Realizado na localidade de Bananal de Cima, em Várzea da Palma, o Comitê executou o projeto de construção de mais de 370 bacias de captação de água pluvial (barraginhas), cercamento de 4 mil metros de veredas e desenvolvimento de ações de Educação Ambiental e Mobilização Social nas comunidades da região.

Atualmente, o CBH Rio das Velhas está elaborando o Plano de Manejo da APA (Área de Proteção Ambiental) Serra do Cabral. Principal instrumento de planejamento e gestão das unidades de conservação, o Plano de Manejo estabelece normas que devem nortear o uso da área e o manejo dos recursos naturais. Nele se estabelece o zoneamento que define quais áreas dentro da unidade podem ser utilizadas e para quais usos. É uma forma de garantir o uso sustentável do lugar, atendendo a diversos interesses.

Sempre-vivas embelezam a Serra do Cabral, patrimônio natural da região.

Sempre-vivas embelezam a Serra do Cabral, patrimônio natural da região.

Um desbravador. Um encontro. Uma igreja inacabada.

“Era impossível contemplar sem entusiasmo o encontro dos dois poderosos cursos de água. O Rio das Velhas faz uma curva graciosa de nordeste quase que para oeste e, descendo por um trecho reto, com cerca de 183 metros de largura, mistura-se com o São Francisco, que vem de leste para recebê-lo (…) Se algum lugar merece o selo de grandeza conferido pela mão da Natureza é essa confluência”, trecho registrado no diário do desbravador inglês, Richard Burton, quando presenciou o encontro dos Rios das Velhas e São Francisco, em 1867.

A confluência narrada por Burton localiza-se nas proximidades do distrito de Barra do Guaicuí, no município de Várzea da Palma, sendo então um dos principais pontos turísticos da região e do norte de Minas Gerais. A localidade também é fonte de inspiração para histórias, lendas e contos que dão um clima de curiosidade e encantamento aos moradores e visitantes.

Um atrativo da vila é a Igreja de Pedras Senhor Bom Jesus de Matozinhos que foi erguida com enormes blocos de pedra às margens do Velhas e que nunca fora acabada. Em ruínas, possui uma sólida construção de pedras com paredes pela metade e sem um teto. Uma imponente gameleira cresceu no alto da parede do fundo e suas raízes dão textura às paredes de pedras.

Ninguém sabe ao certo por quem e por qual motivo a construção fora erguida, alguns dizem que a igreja teve sua construção iniciada pelos jesuítas que navegavam da Bahia pelo Rio São Francisco, portanto, várias décadas antes da bandeira do paulista Fernão Dias Paes Leme, que comandou várias missões pelo interior do Brasil colônia em busca de ouro e pedras preciosas no século XVII. Outra lenda diz que os operários morreram de malária. Mais outra destaca que a construção foi interrompida ao se constatar que o leito do Rio das Velhas inundaria o templo em época de enchentes.

Atualmente, o local em ruínas foi reconhecido com o tombamento do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).

À esquerda, o estudioso e aventureiro inglês Richard Francis Burton, que percorreu os Rios das Velhas e São Francisco até o mar, em 1867, cruzando o interior de um Brasil que profetizava como país do futuro. Abaixo, Rio das Velhas em seu encontro com o São Francisco. “Se algum lugar merece o selo de grandeza conferido pela mão da Natureza é essa confluência”, definiu o desbravador inglês Richard Burton.

Água para beber, peixe para pescar

De acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) do CBH Rio das Velhas, os principais agentes de degradação das águas da região associam-se ao lançamento de esgotos domésticos.

Para exemplificar esse cenário, um fator que reflete diretamente sobre a qualidade da água é a quantidade de peixes no rio. De acordo com a presidente da Colônia de Pescadores Artesanais e Aquicultores Z34 da Barra do Guaicuí, Vilma Martins Veloso, um dos grandes problemas que prejudicam a pesca no local são os lançamentos de esgoto. “O nosso esgoto é jogado no rio diretamente e quando chove jorra para todo lado”.

Para Vilma, o agronegócio também coloca em risco a atividade da pesca. Segundo ela, a produção “joga veneno” nos cursos d’água, o que vai prejudicando ano após ano a quantidade de peixes no rio.

A colônia de pescadores da qual Vilma faz parte conta com cerca de 120 profissionais que vivem diretamente do rio. É de lá que essas pessoas tiram o seu sustento e o da sua família, são centenas que precisam de água boa para ter a sua renda. “Temos que ter água limpa, água saudável para podermos criar os nossos peixes para nossa renda, dependemos disso”.

Indagada sobre como é viver entre os dois imponentes Rios das Velhas e São Francisco, Vilma diz que se sente privilegiada por presenciar a confluência tão perto de casa. “A gente fica encantada por morar ao lado de dois rios tão importantes. Para mim, isso é um privilégio porque esses rios são a nossa vida”.

 

Vilma Martins Veloso é presidente da Colônia de Pescadores que reúne cerca de 120 profissionais que vivem diretamente do rio.

Vilma Martins Veloso é presidente da Colônia de Pescadores que reúne cerca de 120 profissionais que vivem diretamente do rio.

Para contribuir com o cenário de melhora da qualidade das águas, o CBH Rio das Velhas elaborou os Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB) dos municípios de Várzea da Palma e Lassance. Instrumento fundamental para a política pública de saneamento e exigência do governo federal para o recebimento de recursos da União, o PMSB permite entender o contexto atual dos serviços de saneamento de cada município, como a distribuição de água, o esgoto, a coleta de resíduos e a drenagem.

Outro fator que prejudica as águas da região, segundo o Plano Diretor de Recursos Hídricos, são as cargas difusas que contribuem para a deterioração e o seu aporte está relacionado, principalmente, às atividades agropecuárias que favorecem os processos erosivos, devido à remoção da cobertura vegetal.

Diante disso, o CBH Rio das Velhas já viabilizou a construção de 450 bacias de contenção nas margens de estradas rurais dos municípios de Lassance e Várzea da Palma, além da recomposição florestal com o plantio de 500 mudas e o cercamento de três nascentes.

 

Sertão também é ciência

No ano de 1907, o médico Carlos Chagas chegou em São Gonçalo das Tabocas, atual Lassance, com a missão de conter um surto de malária que acontecia na localidade. Ao observar muitos pacientes com problemas cardíacos e ouvir relatos de um inseto que picava o rosto das pessoas enquanto dormiam, Chagas resolveu investigar o fenômeno.

Com coletas de amostras e exames do intestino do barbeiro, descobriu a enfermidade que assolava as pessoas da região. A data da descoberta foi 14 de abril de 1909.

Em homenagem ao médico e à sua descoberta, Lassance inaugurou o Memorial Carlos Chagas, onde é possível ter acesso às informações sobre o médico, às ferramentas que ele utilizava e aos documentos da época.

Foi em Lassance que Carlos Chagas recebeu a missão de Oswaldo Cruz de combater o surto de malária que impedia a construção do ramal ferroviário entre Corinto e Pirapora.

A união faz a força

O Subcomitê Guaicuí, vinculado ao CBH Rio das Velhas, conta com diversos atores sociais que têm o objetivo de ver a vida prosperar. Assim, de forma coletiva e participativa, o Subcomitê discute maneiras de compatibilizar o equilíbrio ecológico com o desenvolvimento econômico e socioambiental do território.

Um grande exemplo disso é o Projeto Resgatando Jovens que teve o objetivo de capacitar a comunidade de Porteiras, em Barra do Guaicuí, para a construção de um viveiro de mudas, manutenção, desenvolvimento e coleta de sementes.

A idealizadora do projeto e conselheira do Subcomitê Guaicuí, Zita Ruas Rodrigues, conta com orgulho a proposta do projeto. “O objetivo é de segurar os jovens na comunidade. Porque aqui os jovens que se formam no ensino médio ficam sem trabalho e não têm a opção de continuar os estudos e acabam saindo para as cidades para conseguirem emprego. Alguns conseguem serviço, outros encontram caminhos errados que acabam trazendo consequências para a família e a comunidade. Então, foi esse meu pensamento de segurar eles na comunidade porque, tendo emprego, seria mais fácil para eles”.

Com a vontade de ver a comunidade prosperar e o sonho de ver o projeto ser um exemplo para outras comunidades, o Subcomitê foi atrás de outras parcerias para o Projeto Resgatando Jovens.

O terreno onde fica o viveiro é uma área de 16 hectares, localizado na margem direita do Rio das Velhas, que foi cedido para a comunidade pela prefeitura de Várzea da Palma. O Grupo Mantiqueira, importante usuário de água da região, disponibilizou maquinário para manutenção do terreno, roçadeira, trator e caminhão, além de insumos para o início do viveiro. Já a empresa Vallourec doou toda a madeira para montar a estrutura do lugar.

Através do Subcomitê Guaicuí conseguimos um curso de viveiristas, muitos participaram.
Depois disso, o IEF [Instituto Estadual de Florestas] nos indicou para um promotor do Ministério Público. Assim, já aconteceu uma visita na área e o MP nos fez a proposta de continuar o projeto por meio da coordenação do Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], onde já começaram os trabalhos com mais visitas ao local e entrevistas com a comunidade. Porém, com a pandemia, o Sebrae precisou dar um tempo nas atividades”
,
explicou Dona Zita.

Além disso, o Sebrae propôs junto ao viveiro a produção de uma horta, o que deverá permitir um retorno financeiro mais rápido para a comunidade. “Por aqui, temos fazendas e cantinas de escolas que já se propuseram a comprar as nossas hortaliças”.

Enquanto a comunidade aguarda a pandemia da Covid-19 passar para o projeto seguir, o Subcomitê Guaicuí continua firme no propósito de preservar as águas do Rio das Velhas que por ali passam, com o intuito de entregá-las melhores para o Velho Chico que chega logo adiante.

Projeto do CBH Rio das Velhas e Subcomitê Guaicuí capacitou a comunidade para a construção e manutenção de um viveiro de mudas.

Projeto do CBH Rio das Velhas e Subcomitê Guaicuí capacitou a comunidade para a construção e manutenção de um viveiro de mudas.

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Ohana Padilha
Fotos: Álvaro Gomes, Fernando Piancastelli, Léo Boi e Miguel Aun
Ilustração: Clermont Cintra