Revista Velhas nº15: Entrevista com Tasso Azevedo

23/05/2022 - 21:02

Coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo comenta a série de mapeamentos que jogou luz para o avanço da degradação ambiental em todos os biomas, estados e bacias hidrográficas do país.


O Brasil perdeu 3,1 milhões de hectares (ha) de superfície de água em 30 anos, uma redução de 15,7% que equivale a mais de uma vez e meia a superfície de água de toda região nordeste em 2020. A tendência de perda foi observada em todos os biomas e todas as regiões hidrográficas do país que guarda 12% das reservas de água doce do planeta.

Com 40% de redução, a Bacia do Rio das Velhas foi a 7ª sub-bacia hidrográfica, dentre 76, que mais perdeu superfície de água nas últimas três décadas. O território do Rio São Francisco como um todo reduziu 15% em águas. Entre os estados da federação, 23 tiveram redução de superfície de água e Minas Gerais foi o 3º pior nesse indicador, com um saldo negativo de mais de 118 mil ha.

De 1985 a 2020, o Brasil também perdeu 82 milhões ha de vegetação nativa, enquanto a agropecuária avançou 81,2 milhões ha – um acréscimo de 44,6%. Na Mata Atlântica, dois terços do bioma hoje são ocupados pela agropecuária. 24 das 27 unidades federativas do país registraram perda de cobertura original nesse período.

A cada ano, uma área equivalente à Inglaterra – 150 mil km² – é queimada no Brasil. Entre 1985 e 2020, quase 20% do território brasileiro pegou fogo ao menos uma vez. Dois terços do fogo ocorreram em áreas de vegetação nativa e, no caso do Cerrado, a área queimada por ano desde 1985 equivale a 45 vezes a área do município de São Paulo.

Em 35 anos, a mineração sextuplicou no Brasil: de 31 mil ha para 206 mil ha. Quase três quartos da atividade no país ocorrem na Amazônia. Hoje, o garimpo já ocupa uma área maior que a mineração industrial e avança sobre terras indígenas e unidades de conservação.

Os dados são fruto da série Brasil Revelado, do MapBiomas, iniciativa multi-institucional que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, focada em monitorar as transformações na cobertura e no uso da terra no Brasil.

Quem está à frente dessa empreitada é Tasso Azevedo, engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo e pesquisador associado do Brazil-Lab na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Azevedo foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflora. Atualmente, lidera o MapBiomas e é Coordenador Geral do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG).

Em entrevista à Revista Velhas, Tasso Azevedo comenta a série de mapeamentos sobre o uso e a cobertura do solo, a água, o fogo e a mineração no Brasil, que evidenciou um país em processo franco de degradação ambiental. “Talvez estejamos próximos a um ponto de ruptura, em que a dinâmica do planeta pode começar a multiplicar ou aprofundar nossos impactos, em vez de atenuá-los”, adverte.

 

Os resultados da série Brasil Revelado são impressionantes. Para além da fotografia que ela nos apresenta dos últimos 30/35 anos, o que a análise sobre essas séries históricas nos sugere?

Que estamos num processo de degradação dos recursos naturais. A gente observa isso tanto na perda de cobertura de vegetação nativa no Brasil, quanto pela perda de superfície de água e a degradação causada pelo fogo – e esses três processos acabam estando relacionados. O efeito da degradação e redução de superfície florestal, notadamente na Amazônia, tem impacto na disponibilidade de água e chuva, que por sua vez está relacionada com a seca, que por sua vez está relacionada com o fogo, que também está relacionada à disponibilidade de água. Essas coisas conversam e se potencializam. Somadas a isso as mudanças climáticas globais, a gente tem uma espécie de máquina trabalhando no sentido contrário da regeneração dos ecossistemas.

A gente pode dizer que, em geral, o planeta opera atenuando os nossos impactos, e, nesse momento, talvez estejamos próximos a um ponto de ruptura, em que a dinâmica do planeta, por conta dessas alterações todas, pode começar a multiplicar ou aprofundar os impactos, em vez de atenuá-los. A floresta, por exemplo, vinha atenuando os nossos impactos, crescendo, se recuperando e capturando o carbono que a gente emite para a atmosfera. Mas, à medida em que a gente está impactando, desmatando, degradando recursos e chegando próximo a esse ponto de ruptura – na Amazônia, por exemplo, já tem regiões que não conseguem capturar mais carbono do que emitem – ela agrava o problema. Então essa é a questão fundamental: como manter o planeta como um aliado, que nos ajuda a atenuar e minimizar os nossos impactos, em vez de agravá-los.

O Brasil teve perda de 82 milhões ha de vegetação nativa entre 1985 e 2020. Nesse período, a agropecuária aumentou 81,2 milhões ha.

 

Particularmente, a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas perdeu 40% de água superficial nesse período. O que explica essa tendência de redução de superfície de água que ocorre em oito das 12 bacias hidrográficas do Brasil?

É interessante só notar que, quando você pensa nos cursos de água natural, a perda foi nas 12 bacias. As principais bacias que não tiveram perda é porque essas tiveram nesse período um barramento grande. Na [Bacia Hidrográfica] Tocantins-Araguaia, por exemplo, isso fica muito claro: do lado do Araguaia há uma redução das superfícies de água natural porque não teve barramento, e, no lado do Tocantins, tem um leve aumento, em que a perda [de água] natural estava sendo compensada por alocação de barragens.

Sobre essa tendência há alguns fatores, mas o principal é que o regime de chuvas está mudando. Em geral, no Brasil, isso está acontecendo: nem tanto uma redução do total das chuvas, mas uma concentração da chuva num determinado período e o aumento dos períodos secos. E [para se ter] água nas bacias hidrográficas, é importante se manter a constância, sempre ter chuva, sempre ter água correndo e ter o processo de reciclagem [das águas] que as árvores fazem. A mudança no clima está causando essa concentração de água em um período, então você tem às vezes enchente e logo depois uma seca prolongada – e, na média, a superfície de água foi diminuindo. O segundo fator é o desmatamento, porque nas bacias ele reduz a capacidade de você reciclar a água. E aí tem especificamente a questão das áreas de proteção, das áreas ripárias, áreas de preservação permanente ou matas ciliares, porque elas têm a capacidade de promover a retenção de água, funcionando como uma espécie de esponja que retém a água durante o período úmido e vai soltando essa água de forma mais lenta no período seco para manter os cursos d’água.

Nos últimos 30 anos, a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas perdeu 40% de superfície de água.

 

Especialmente no Cerrado, a água natural de rios livres está perdendo espaço para a água antrópica, de reservatórios. Quais são as consequências disso no ciclo hidrológico, de maneira geral?

Dependendo de como for feito e planejado, ele pode ser bom, como pode ser ruim. Se tiver dentro do Marco Regulatório e se forem reservatórios pensados e implementados a partir dessa lógica, autorizados e que seguem a regulação de uso dos órgãos reguladores, eu diria que eles são positivos.

O problema é que a gente tem uma grande quantidade de reservatórios que são informais. E qual é a diferença de um para outro? É que nos reservatórios que são cadastrados, registrados, e que são reservatórios de uso público, eles são caracterizados por serem de uso múltiplo. Então, a gestão deles passa pela lógica do bem público, do benefício público.

Um lago de hidrelétrica, embora seja vinculado a uma operação de hidrelétrica, a sua gestão tem que ser pensada de forma a lidar com as outras necessidades que se tem de água, seja o consumo humano, irrigação da agricultura, pesca – tudo o que precisar, além da geração de energia. A gente tem uma quantidade muito grande de reservatórios informais, que são, na verdade, apropriação privada daquele recurso hídrico – e aí, como ele não está no sistema regulatório, ele impacta o sistema hídrico como um todo.

O que eu quero dizer é que, dependendo de como forem feitos, os reservatórios são uma coisa boa, porque eles, digamos, mantém mais água, durante mais tempo, disponível. Mas eles não podem ser feitos em prejuízo dos cursos naturais, porque se a gente vai gerando um prejuízo para os cursos naturais, a gente está, talvez, gerando uma máquina que opera no sentido contrário. E tem alguns lugares que é trágico, né? Belo Monte talvez seja o melhor caso que se tem hoje que é uma tragédia, porque não se tem água para gerar energia, se destruiu uma parte gigante de um rio que tinha uma importância fundamental para a comunidade que está ali, e com enormes impactos na questão pesqueira e na biodiversidade local.

23% da água superficial no Brasil são de reservatórios e represas artificiais, como a Represa de Três Marias, na região Central de Minas Gerais.

23% da água superficial no Brasil são de reservatórios e represas artificiais, como a Represa de Três Marias, na região Central de Minas Gerais.

 

Um dos estudos do MapBiomas mostrou que a mineração cresceu mais de seis vezes entre 1985 e 2020. Em Minas Gerais, essa mineração se dá predominantemente de forma industrial, mas não são irrelevantes os números sobre garimpo – é o 5º estado com mais área destinada a essa atividade. O que esses números revelam em relação às diferentes dinâmicas das áreas de mineração e suas relações?

Do ponto de vista de perspectiva, a área ocupada pela mineração no Brasil, proporcionalmente a outros usos da terra, é muito pequena. Nós estamos falando de 200 mil hectares, ou um pouco mais do que isso, que é 0,02% do território. Mas o problema é que onde tem mineração há um impacto muito profundo e, dependendo, um impacto que se alastra, especialmente através dos recursos hídricos. Antes, a gente [do MapBiomas] fazia os mapas de mineração tudo junto e, esse ano, nós aprimoramos a técnica de mapeamento de forma a captar não só as pequenas operações de mineração, que não estavam sendo captadas, como também separar aquilo que seria a mineração industrial do garimpo. E o que chamou atenção não foi tanto o crescimento de área da mineração como um todo, porque a mineração industrial ela vinha crescendo e tem mantido o mesmo ritmo de crescimento.

O que chamou muita atenção foi o que aconteceu com o garimpo. Porque o garimpo, em geral, é uma atividade feita de forma irregular, e não só porque muitas vezes não tem autorização, mas porque não segue absolutamente nenhum padrão de controle ambiental, nem social, com condições de trabalhos muito ruins, operando sem salvaguardas ambientais nenhuma. E essas áreas não são recuperadas. Então, no caso do garimpo, é uma área que vai se acumulando, com enorme impacto sobre o recurso hídrico – porque tem contaminação com mercúrio e outras coisas – e tem esse fator de que ela está crescendo notadamente nos últimos anos em áreas protegidas, especialmente em terras indígenas.

Em 2020, a área minerada no Brasil é 6x maior que o reportado para o ano de 1985, saltando de 31 mil hectares para 206 mil.

 

Vocês também revelaram que 1/5 do território brasileiro já queimou ao menos uma vez desde 1985. O Cerrado é o 2º bioma que mais queimou (36% da área, só atrás do Pantanal, com 57,5%). Quais as implicações disso a médio prazo?

Depende do bioma e da situação. No caso do Cerrado, ter fogo – e até com certa frequência – não é um evento que naturalmente seria raro. O fato de naturalmente não ser raro – mas raro que estou falando é pegar fogo a cada 10, 15, 20 anos – quer dizer que o ambiente está mais propício a lidar com o fogo. Mas, mesmo no Cerrado, a gente tem sinais de que ele está queimando mais do que deveria em algumas regiões. O que quer dizer isso? Quer dizer que o ambiente está se degradando. No caso do Pantanal e da Amazônia é uma outra história, e a mesma coisa vale para a Mata Atlântica. No Pantanal, embora o fogo seja algo que aconteça, especialmente nas áreas altas, para se ter fogo natural tem que ter ignição, que geralmente é raio. E raio vem, em geral, antes da chuva, então o fogo não pega grandes dimensões. Existe o fogo natural, mas ele vem, pega fogo, vem o vento, vem a chuva e apaga. Então, você convive, dá tempos de os bichos escaparem.

O que a gente está tendo hoje é um efeito muito mais complexo, que é uma seca aprofundada no Pantanal, que você vê a olhos vistos: a gente está falando de uma redução de quase 60% da superfície de água do Pantanal, entre 1985 e 2020. E as conversões de pastagem nativa para pastagem plantada geraram um regime diferente de uso do fogo, em que você o usa na época mais seca para renovar pastos e esse fogo escapa para dentro de áreas naturais, que já estão mais secas, e isso realmente não é algo que o Pantanal está acostumado ou suporta. Então, o impacto na fauna é uma coisa impressionante, porque, além de o bicho morrer queimado, o bicho que sobrevive não tem o que comer. A gente está para entender ainda a extensão da consequência do que estamos vendo agora.

Para a Amazônia, é mais complexo ainda, porque lá os eventos de fogo são muito raros. A chance de se ter fogo em algum lugar da Amazônia é de 1 para 500 anos. E ainda precisa ter um raio, basicamente, para gerar fogo. Então, é possível afirmar que praticamente todo fogo que tem na Amazônia é causado pela ação humana, que é ou renovação de pasto, ou colocar fogo em área recém desmatada para terminar o trabalho. E é esse fogo que vai para dentro da floresta, ainda mais na fase seca.

E a floresta acaba apagando o fogo, só que, no processo de apagar o fogo, a floresta se degrada, e ela não tem os instrumentos de recuperação rápida e de proteção contra o fogo que tem o Cerrado. E, se você degrada uma vez com fogo na Amazônia, a floresta é capaz de se recuperar em talvez 10, 15, 20 anos. Se pega fogo duas vezes, nesse período que ela tinha para se recuperar, esse prazo aumenta para 30, 35, talvez 40 anos. E, se pegar fogo três vezes, a gente nem sabe se recupera ou não, não tem dado para isso. E aí está tudo ligado, porque se a Amazônia vai se degradando, ela tem menos capacidade de jogar água para atmosfera, que representa 1/3 da chuva no Brasil; e aí menos capacidade de jogar água para atmosfera, fica mais seco, mais seco mais fogo, mais fogo mais degradação das águas…

1/5 do solo brasileiro já queimou ao menos uma vez desde 1985.

 

Como esses estudos se complementam? Quais fotografias comuns eles trazem?

Eles adicionam layers [camadas] de informação que se comunicam, tem vasos comunicantes para tudo. E o que é importante a gente entender é: quais os processos que levam a um processo de degradação, ou que levam a um processo de regeneração, ou a um processo virtuoso em relação ao uso do território.

A ideia é que – e é para isso que a gente produz esse dado – seja na academia, sejam nas formações de políticas públicas, sejam nas decisões empresariais, a gente possa levar em consideração esse conhecimento para tomar decisões que, basicamente, ajudem a gente a conservar e regenerar esse recurso natural, seja o solo, seja a água, seja a biodiversidade, que estão na base do que sustenta a vida no planeta hoje. A nossa vida, porque o planeta não está nem aí. Ele estava aí muito antes da gente, vai estar aí muito depois da gente e, para ele, tanto faz a gente estar aqui ou não. Mas interessa à gente fazer com o que o planeta funcione ainda de forma que nos proteja.

Tasso Azevedo foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflora. Atualmente, lidera o MapBiomas e é Coordenador Geral do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG).

Tasso Azevedo foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflora. Atualmente, lidera o MapBiomas e é Coordenador Geral do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG).

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Por Luiz Ribeiro
Fotos: Márcia Alves
Infográficos: Clermont Cintra